domingo, 2 de outubro de 2011

IYÓ AIYÊ: TEOLOGIA, AÇÃO SOCIAL E NEGRITUDE EM CACHOEIRA-BAHIA.

*IYÓ AIYÊ: Teologia, ação social e negritude em Cachoeira-Bahia.
Mércia Cruz.

“Eu trago quilombos e vozes bravias dentro de mim”
Linhagem, Carlos Assunção, 1998.   


Caracterizada como uma cidade de fortes tradições católicas e afrodescendentes, comumente representada por inúmeras igrejas e terreiros, Cachoeira era vista pelo senso comum como uma “terra” improdutiva, estéril e indiferente à propagação dos ensinamentos protestantes. No entanto, esta “percepção” imbuída de preconceitos, por vezes compartilhada inclusive por membros de denominações evangélicas, se deve muito ao entrave histórico entre cristianismo e religiões de matriz africana. Essa discussão é antiga e não coloca como foco apenas a atuação da igreja católica nos tempos de escravidão no Brasil, pois a igreja de ordem protestante também teve forte participação nos processo de dominação e opressão do povo negro, seja por co-participação ou por simples omissão. Conforme as considerações de Venerano (2003):


(...) o protestantismo limitou-se apenas a levar o ensino religioso para os negros, oferecendo consolo e buscando sua conversão. Na verdade não oferecia qualquer mudança social ou política para a escravidão. As discussões a este respeito foram transferidas para o âmbito político, através do argumento de que a Igreja não se envolve em problemas sociais justificando a sua omissão diante da escravidão (ANDRADE, 1995 apud VENERANO, 2003, p. 14-15).




Nesse sentido, percebe-se, dentre os diversos fatores, como a dicotomia entre o espiritual e o social se perpetuou ao longo dos anos no imaginário da confissão protestante. Mas, com o advento da expansão do movimento evangélico na atualidade, urge a necessidade de uma reflexão baseada na relação dialética entre fé e sociedade. Tomando a dialética como termo utilizado por Marx para fundamentar a sua teoria de compreensão da realidade, esta inspira dinamismo, relatividade e contradição. Ainda na perspectiva de Marx, a dialética pressupõe uma relação ora complementar, ora contraditória entre pensamento e realidade posta. Segundo ele “Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência”. Contradição e complementariedade que se constitui como parte da identidade do ser social, e por conta disso, devem ser analisadas como unidade, não no sentido de identidade, mas de relações que se unem em favor do sujeito, porém sem perder as suas especificidades. Neste aspecto corpo e alma, fé e sociedade, espiritual e humano se encontram, dialogam e se relacionam sem a supremacia de um sobre o outro.




O Verbo/Palavra estava com Deus, e era Deus. Se fez Carne/Corpo e veio morar entre nós. Assim, nos fala o evangelho de João, que diz também que o Verbo/Palavra (Deus) pode ser visto em sua glória, cheio de graça e verdade (Jo 1:1,14). Deus, ao se encarnar, tornou-se corpo e alma. Herdeiros da filosofia grega, protagonista do dualismo entre corpo e alma, passa-se a valorizar mais a alma em detrimento do corpo, esquecendo-se que o ser humano é ao mesmo tempo espiritual e corporal. Negar um desses aspectos é caricaturar a pessoa humana e mutilar a criação de Deus. (VENERANO, 2003, p.26)




Assim, a manifestação de uma espiritualidade fragmentada que separa o espiritual do humano, acaba por se traduzir em omissão e indiferença às desigualdades que se manifestam na sociedade em diversas formas.
Com efeito, são inúmeros os desafios e as reparações históricas sobre as quais a igreja protestante precisa discutir e atuar, mas diante do sistema dominante contemporâneo qual tem sido o papel da igreja junto à comunidade? Sabe-se que o capitalismo é interpretado não apenas como sistema econômico adotado pelo nosso país, mas também atua como ideologia que ultrapassa o âmbito produtivo e vai se manifestar no social sob a égide da desigualdade, da pobreza e da discriminação. De um lado está a classe abastada, sempre opressora, dona do poder e do outro, a classe que vive do trabalho, a maioria excluída, sofrida, marginalizada, trabalhadora, sustentáculo da produção econômica social. Assim, o capitalismo traduz-se como um sistema opressor que ao longo da história esmaga o humano em favor dos seus interesses classistas. Marx já dizia...


A história de toda sociedade existente até hoje tem sido a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, o opressor e o oprimido permaneceram em constante oposição um ao outro, levada a efeito numa guerra ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou, cada vez, ou pela reconstituição revolucionária de toda a sociedade ou pela destruição das classes em conflito. (MARX & ENGELS, 1999, p. 26)




Diante de tanta desigualdade, mas também de luta que marca a história do povo do Recôncavo, se faz pertinente a seguinte indagação: há espaço para uma teologia negra e engajada socialmente no protestantismo brasileiro, baiano e cachoeirano? Como a sociedade enxerga a atuação de uma igreja que atua apenas como um “refúgio” espiritual sem nenhum tipo de vínculo com as necessidades sociais da comunidade em que se encontra instalada?  Como a população cachoeirana enxerga a igreja?


Sem dúvida, os questionamentos são muitos, mas percebe-se cada vez mais a necessidade da Igreja, enquanto instituição social, se envolver com as causas da comunidade. Atuando numa perspectiva dialética, cumprindo o seu papel de oferecer um espaço de adoração, louvor e confissão de fé, mas também compartilhando dos sentimentos de busca por melhores condições de vida, lutando pelo combate a discriminação racial e desigualdade social. De acordo com uma pesquisa recente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a vida social para negros e negras revela disparidades em relação aos brancos.




Uma pesquisa divulgada nesta sexta-feira pelo IBGE mostra que 63,7% dos 15 mil entrevistados pelo instituto reconhecem que a raça e a cor influenciam a vida. As mulheres apresentam percentual maior do que os homens: 66,8% delas disseram que a cor ou raça influenciava, contra 60,2% deles. O estudo mostra ainda que, na opinião 71% dos entrevistados, o trabalho é a área mais influenciada pela cor ou pela raça. Em seguida, aparece a relação com a Justiça e a polícia (68,3%), o convívio social (65%), a escola (59,3%) e as repartições públicas (51,3%).


A "Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População: um Estudo das Categorias de Classificação de Cor ou Raça" coletou informações em 2008, em uma amostra de cerca de 15 mil domicílios, no Amazonas, Paraíba, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Distrito Federal.  


Nesse sentido é que as desigualdades que nos foram impostas ao longo da história devem ser cada vez mais enfraquecidas para que o diálogo entre fé e sociedade, religião e ciência, protestantismo e outras crenças seja estabelecido, a fim de garantir a busca por um modo de sociabilidade mais humano e emancipatório. Parafraseando Drummond, “no meio do caminho tinha uma pedra...”. Com efeito, uma pedra pode representar um obstáculo onde comumente tropeçamos. Todavia, a mesma pedra que “atrapalha”, constrói abrigos e estabelece relações, derrubando assim as muralhas da intolerância. “se eu conversar contigo, disso estou muito certo, consigo me aproximar...” (p.12 – Abrindo Caminhos: Ana Maria Machado).

Referências:
* IYÓ AIYÉ: Sal, terra (sal da terra). fonte: http://ocandomble.wordpress.com/vocabulario-ketu/
MACHADO, Ana Maria. Abrindo Caminho. Ed Ática.
http://www.bibliaonline.com.br (acesso em 19/07/2011 às 23:00 h).
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
http://camacarinoticias.com.br/leitura.php?id=130452  (acesso em 22/07/2011 às 13:00h).


Um comentário:

  1. Cada dia penso o quanto pecamos pelo excesso. Aliás não foi à toa que o Senhor inseriu o pecado da glutonaria no rol daqueles que levariam a muitos ao inferno. A "igreja" se esquece que ser cheia do Espírito é ser equilibrada emocionalmente ao ponto de estar sensível a sua condição de miserável pecador, e ao mesmo tempo de salvo, é ser sensível o suficiente para sentir a dor do seu próximo e se compadecer dele. Ser cheio do Espírito Santo é exalar amor, compaixão, é estender a mão ao pobre, é renunciar o "seu" prazer para ver no outro a satisfação.

    Abração Mércia! Juan Sterfan

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